Saturday, October 3, 2009

Um fogo para ti - parte III


"Cada Verdade que apreendes será para ti , uma novidade absoluta, como se nunca antes tivesse sido escrita."- Antigo provérbio Egícpio

-Não...- O sacerdote ergueu-se novamente segurando o ceptro prateado na mão direita, e batendo com ele no chão de pedra fez aparecer uma candeia doirada na mão esquerda - Há algo que podes fazer, algo que fará toda a diferença...
- Como?! - Arístocles estremeceu levemente; apesar de ser um díscipulo aceite no círculo dos Grandes Mistérios ainda não se acostumara a presenciar as materializações de objectos que Djehut realizara em algumas ocasiões, por razões necessárias.
- Quando o mar se ergueu como um colosso enfurecido, determinado a varrer a existência de uma nação inteira, uma nação que outrora o venerara, que carregara a sua essência e lhe oferecera hinos de louvor...havia apenas despaixão no coração do mar, não era a raiva enfurecida que o movia, mas sim sementes outrora plantadas... movia-se como um
soldado de hierarquia sagrada, cego e surdo a tudo excepto à missão de que fora encarregue...por essa altura, já não era uma criança e a minha infância roubada afastava-se nas mãos do passado. Prisioneiro nas masmorras construídas ao nível do mar na península mais externa do continente, consegui nadar por entre os blocos de pedra quando a prisão foi submersa e destruída . Porém, a queda sucessiva de colunas, estátuas e pesados objectos não me permitia alcançar a superfície e acabei por perder os sentidos, acreditei que morreria e parei de lutar...Quando despertei novamente, vi o rosto da Sacerdotiza da Ilha dos Espelhos, inclinado sobre o meu...
- A Ilha dos Espelhos, a do oráculo do Tempo, a que aparece e se eclipsa nas brumas?
- Sim, essa.- o tom de voz de Djehut assemelhava-se agora a uma chuva cristalina de Verão e havia no seu semblante uma expressão onírica, de afastamento do mundo - Bastou aquele instante, que se estendeu para além do espaço e do tempo, para compreender...
.
O leve ruído de passos anunciou a presença de uma terceira pessoa: uma jovem mulher de longos cabelos negros que envergava uma túnica de linho fino e transportava um cálice contendo uma bebida quente feita a partir de ervas desconhecidas. Em siléncio, colocou o cálice à frente do filósofo, curvou-se ligeiramente perante o sacerdote em sinal de respeito e voltou a desaparecer na escuridão que envolvia o Templo da Espera.
- O que aconteceu então? - interrogou Arístocles, finalmente resignado à incapacidade de conter a curiosidade...["Vocês, os gregos, serão sempre crianças aos nossos olhos.."]
- Os seus olhos eram habitados por uma tremenda compaixão, suficientemente poderosa para abraçar toda a humanidade, naquele instante compreendemos a importância daqueles que carregam a responsabilidade de caminhar no limiar da viragem da Clepsi
dra da história. Esta candeia ardia acesa no centro do oráculo, “leva-a contigo", disse me ela...e "nesse lugar da terra onde o céu perdeu o horizonte acende um Fogo, um Fogo para mim" . Quando regressei ao local onde outrora se erguera a Ilha-Continente, apenas a mais elavada montanha da ilha de Poseidonis risistia sobre as àguas, nela reluzia a grande Pirâmide Branca, semelhante à que hoje vês. Os sacerdotes compreenderam o poder do símbolo que eu, proscrito e dado como morto transportava na alma mais do que nas mãos...

- Fosteis Iniciado na lendária Poseidonis?

O sacerdote sorriu com indiferença à admiração do filósofo:

- E quando o mar decidiu arrastar para as profundezas o último restício, da outrora intocável Atalantea, foi esta a chama que guiou as grandes barcas de sobreviventes até à minha terra-mãe.

- Vós sois então um verdadeiro... - balbuciou Arístocles, servido-se de todas as suas forças para dominar as intensas emoções que apaixonadamente tentavam controlar o seu pensamento e o seu discurso - Rei-Iniciado...

- E essa candeia é a minha espada e o meu escudo e essa chama não é outra senão a que ardia no templo da Ilha dos Espelhos, que entrego a ti esta noite, pedindo-te que no teu regresso, caminhes até esse lugar da terra onde o céu perdeu o horizonte e acendas um Fogo, um Fogo para mim. Arístocles, perdeu as palavras e o pensamento; naquele momento a sua mente habitava apenas a orla do inteligível...impossível de plasmar ou reproduzir no mundo das sensações. Pequenas gotas de lapis-lazuli resvalaram sobre o corpo despido de Neit, anunciando a madrugada.

- É hora! - advertiu Djehut falando apenas no plano mental do filósofo - E existem coisas que não esperam para toda a Eternidade, esperam apenas o tempo necessário. Com um sorriso capaz de fazer florescer as sementes escondidas no interior da terra após um Inverno rigoroso; o sacerdote recolocou a máscara doirada, e o seu corpo físico desvaneceu-se sob o véu da cúpula celeste dando lugar à sua manifestação etérea, espectral, assumindo a forma de um gigante Ibis azul que poisou no topo da Pirâmide Branca. Arístocles bebeu a poção de ervas deixada a seus pés e observou sem surpresa, o seu próprio corpo cair adormecido no chão do Templo da Espera. Leve como a luz do pensamento, avançou em direcção à câmara secreta da grande Pirâmide Branca, onde o Hierofante iria finalmente recebê-lo diante do altar das Verdades Últimas.”

***

Tinham passado três longos meses desde que Arístocles regressara a Atenas e o magnetismo do entardecer chamara-o até ao mais elevado planalto da Acrópole no momento em que o disco solar se derretia languidamente no horizonte... Na mão direita, transportava acesa a candeia que Djehut lhe entregara e no olhar levava uma promessa. Ao erguer a pequena chama em direcção ao céu pode ver a imagem espectral de um íbis azul que voava em direcção a uma ilha perdida, oculta pela bruma cerrada, onde uma sacerdotiza aguardava pacientemente...

E em uníssono com a misteriosa voz do vento quente de Verão que lembrava as paisagens longíncuas do Nilo Azul, repetiu:
-Hoje caminhei até este lugar da terra onde o céu perdeu o horionte e acenderei um Fogo, um Fogo para Ti.”

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