Sunday, September 13, 2009

Um fogo para ti - parte I

"Os verdadeiros sábios são aqueles que dão tudo o sabem, sem guardarem segredos ou segundas intenções."
- Antigo Provérbio Egípcio

O ven
to quente do deserto ao qual se acostumara ao longo de três intemporais meses murmurava uma canção antiga emoldurando o céu nocturno numa dimensão etérea que haveria de permanecer para sempre gravada na sua alma. O ar da noite, denso de mistério assemelhava-se a uma deusa celeste, cujo corpo, delicadamente serpentado pelos fogos estelares emanava o profundo aroma de uma inevitável despedida.

Durante muito tempo, reflectira acerca da possibilidade de abandonar a sua apaixonante e tumultuosa Atenas para se deslocar à enigmática terra do Nilo AzuL e dos Mistérios últimos que se dizia ali serem ministrados aos discípulos aceites…Ao longo de grande parte da sua vida, desejara ardentemente expandir a sua consciência até à dimensão inteligível das Ideias Puras, por acreditar que dotado de tal poder seria digno de instruir um rei divino, capaz de plasmar uma nova idade de ouro nas ressequidas colinas do Peloponeso…

Porém, naquele momento, após ter provado o silencioso sabor do Nilo Cósmico, servido pelo próprio deus Hapi num cálice em chamas, interrogava-se acerca da coragem necessária para regressar a um estático mundo de sombras e palavras desprovidas de significado. Os aparentemente curtos meses que passara em retiro absoluto no templo de Amon, tinham-se convertido numa realidade construída fora do Espaço e do Tempo, como se décadas de anos terrestres por ele tivessem passado, transformando os pequenos anseios, medos ou dúvidas aos quais outrora chamara seus, em irreais grãos de areia que se desmaterializavam sob os seus pés. Cada noite passada na casa dos Ventos rodeado pelos murmúrios da voz do silêncio e pela dança das formas por eles originada, parecia ter-se convertido em anos ou séculos de experiências humanas, como se a cada respiração morresse e renascesse novamente, como se a cada piscar de olhos contemplasse todas as suas vidas num só instante e durante as curtas horas de sono tivesse sonhado com os mundos dentro e fora do seu próprio mundo, e com a história dos seus elementos e dos elementais que os regem.

Mas naquele dia, ao amanhace,r seria novamente um viajante grego em busca de conhecimento, um actor indistinto num anfiteatro corroido por jogos de poder e decadência de ideais...e até a beleza resplandecente dos capiteis e estátuas dos templos de Atenas não seriam mais do que miragens vazias, um cenário de mármore concebido para um pequeno acto na tragicomédia das Eras.

Todos os homens e os seus pequenos medos e inquietações, o seu egoísmo e incompreensão e até os gloriosos discursos incendiados pelas Musas, seriam apenas frutos da sua estação, efémera, redundante. No seu íntimo, tinha a certeza que nada poderia fazer para transformar os homens e as suas paixões narcisistas e passageiras à imagem das quais conduziam o mundo, a política, a moral....Desde muito jovem aspirara ao Reino Ideal na sua imaginação focada e dirigida. E finalmente vira a sua projecção diante dos seus olhos, no templo do Sonho - tocou nos seus portões e ouviu os seus sons etéreos... Na manhã seguinte restariam as memórias e o vislumbre das Verdades últimas. Naquela noite, a mais importante da sua vida, o momento pelo qual esperara durante mais de vinte anos, contrariava deliberadamente os ensinamentos acerca do "poder do presente imediato" e procurava anticipar-se ao futuro e encontrar forças para regressar a ele. "Seria mais fácil deixar-me perder no deserto", pensou. A escuridão da mente e o desejo de nela permanecer pareciam alimentar o Eu mais profundo dos homens e regressar à caverna quotidiana constituía um desafio maior do que todas as provas que superara ao longo da sua Iniciação.“

Djehut, o sacerdote da Casa do Vento e um dos seus guias no plano dos Grandes Mistérios percepcionou a sua inquietação, pousou o ceptro prateado e sentou-se nas escadas do Templo da Espera, encabeçado pelo sagrado Leão Humano, a gigantesca estátua que representava o "homem Divino" do principio dos tempos, conhecedor da Lei e capaz de a transcender e de se tornar Uno com Ela. Fitava o horizonte em silêncio, acompanhada pelo sacerdote de rosto velado pela expressiva máscara de ouro e pedras precisoas, que escondia o seu rosto,o seu olhar, a sua verdadeira alma, que de tão magnética e poderosa poderia assustar os homens, mesmo os candidatos a iniciados...

-Esse é de facto o teu último desafio, Aristocles! Escolher entre o natural, mas ainda assim, individualista caminho do Ego em prole da Sabedoria ou atravessar a ponte que desce da Verdade ao homem, da Sabedoria ao aprendiz imperfeito...

O filósofo franziu a testa e suspirou profundamente com um brilho melancólico no olhar:
-Posso ter a possibilidade de instruir alguns homens, mas a menos que um rei nascido com o Fado Divino de inspirar toda uma nação deseje que eu partilhe com ele a Visão desse reino Ideal que agora consigo literalmente tocar no mais profundo tabernáculo de mim próprio, não possuo qualquer poder para transformar uma cidade-estado, nem sequer uma pequena aldeia...Se o implacável rumo das Eras conduz civilizações inteiras à sua total desintegração moral...
- Mas também à sua mais elevada expressão...- acrescentou o sacerdote
-Seja! Mas não desejo transformar- me numa estaca solitária no caminho da inevitabilidade, ou do rumo natural que obedece à grande Lei, ainda que rodeado de outras estacas semelhantes, serei engolido pelo peso da mão divina que se abate sobre uma civilização clamando o seu fim!
-A sua Transmutação....
- Como preferires... A sua TRANSMUTAÇÂO pela decadência de valores! Então serei uma pedra insignificante que procura subir a montanha quando esta se encontra prestes a ruir. Homem algum Vence uma montanha...sei do que falo, não sou um idealista inexperiente, as cicatrizes que trago nas mãos são marcas de guerra...

6 comments:

  1. Seshat,
    É com enorme felicidade que dou-te as boas vindas áquele que, agora, também é o teu blog.
    És uma pessoa muito especial para mim, com um lugar no meu coração só para ti, por isso é fácil de ver que é uma enorme felicidade para mim ter-te por cá.
    A tua escrita é mágica e só podia vir de uma alma linda e pura como a tua.
    Espero que seja o primeiro de muitos posts, amiga.

    Um beijo fraterno,
    Ricardo

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  2. Muito, muito obrigada pelo incentivo, fico feliz se o que escrevo transmite coisas boas às pessoas, pois é exactamente isso que pretendo...
    Em breve publicarei a continuação da história.
    :)

    Seshat

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  3. Decidimos mudar a cor do texto do artigo para não ferir os olhos daqueles que poderão sofrer de astigmatismo ou que tenham o monitor mal configurado. :)

    Poderá ainda:
    a) sublinhar todo o texto;
    b) copiar e colar num editor de texto;
    c) configurar o browser para não usar o esquema de cores do site;
    d) não ler o artigo;

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  4. O Egipto fascina a quem dele se aproxima, envolvendo a todos num clima de mistério e de grandiosidade. A história vem sempre envolta numa nuvem mística, quase etérea, resultado da inevitável mistura de deuses, mitos, monumentos e personagens que marcaram, indelevelmente a história da humanidade.
    Sem qualquer sombra de dúvida, a civilização do Egipto antigo atiça a nossa imaginação, pela aurea de mistério que a envolve.
    Belíssima história!

    Um bem haja,
    Lumena

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  5. Sem duvida que o Egipto foi uma das civilizações que mais marcou a própria Humanidade.
    Há algo gravado no nosso inconsciente que simplesmente faz com que seja impossível ser indiferente às piramides. O Império Egipcio, talvez muito mais longo do que actualmente se pensa, deve ter servido de berço a todas as correntes de almas.
    Até aqueles mais inconscientes permanecem por um momento imóveis perante aqueles monumentos que fazem o próprio Tempo temê-los.

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  6. Sobre o post e a história em si, sinto-me um felizardo por já ter lido umas boas páginas. Apesar disso, sinto que esta história contada pela nossa querida Seshat ainda vai aprofundar muito na imaginação e, quem sabe, recuar ainda mais no tempo...

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