Sunday, September 20, 2009

Um fogo para ti - parte II


"A rotina e o preconceito distorcem a visão; cada homem crê que o seu próprio horizonte é o limite do mundo" - Antigo provérbio egícpio


Djehut permaneceu imóvel durante alguns segundos, e com um gesto de determinação retirou a máscara doirada que lhe escondia o rosto. Um calafrio, gelado como um punhal, atravessou o corpo de Aristocles que estremeceu várias vezes antes de conseguir encarar os olhos claros como o céu e profundos como o Abismo Primordial que liam os seus, com a mesma facilidade com que liam os hieróglifos nas paredes dos templos. Os longos cabelos cor de prata emolduravam um rosto claro e reluzente como marfim revelando uma aparência pertubadoramente jovem, que assumia contornos de beleza andrógena rodeada por um brilho misterioso que lembrava a luz do luar.-Criança...-murmurou, como se os ventos do deserto nascessem a partir da sua voz- estes olhos já viram mais batalhas do que os dedos das tuas mãos podem contabilizar, viram a ascençao e queda de cidades, reis, deuses e impérios....- A tua reminiscência, absolutamente perfeita....- Reminiscência... - sorriu o sacerdote como se os seus lábios guardassem o peso do coração do mundo - não; apenas apenas a memória de uma só existência...O filósofo arregalou os olhos de espanto curvando a cabeça em sinal de respeito.- Mas então, significa que sois...-Um filho do Vento Sagrado, um Alquimista da consciência e do real- completou Djehut - Eu estava presente quando o vértice doirado da pirâmide branca foi colocado por altura do jubileu de Hórus, o Rei- Falcão, e quando anos mais tarde foi fundada a primeira Casa da Vida. Coroei o primeiro faraó, senhor das duas Terras e ouvi os seus sonhos e inquiteções. Desenhei a planta da Casa de Osíris na cidade de Abydos e anos mais tarde limpei o sangue das paredes da Casa do Silêncio em Tebas quando o seu sacerdote morria nos meus braços assassinado por uma multidão enlouquecida.. Ouvi os gritos das mulheres quando os homens deste país desejaram a morte dos seus próprios irmãos, quando os seus filhos morriam à fome porque estes acreditavam ser mais justo gastar todo o ouro em cerveja e bailarinas escravas...As minhas lágrimas juntaram-se às dos Magos dos Céus quando leram nas estrelas a morte dos Grandes Mistérios no Egipto...-Como pudesteis suportar tudo isso?- indagou o filósofo consumido pela admiração.Djehut olhou os céus de forma instrospectiva em busca da estrela Sírius no horizonte eterno; dos seus labios brotavam palavras que davam lugar a imagens e sentimentos, que recriavam paisagens, como se cada som fosse pronunciado com a voz dos Deuses.- Outrora senti a terrível calma do momento em que toda a Terra se recolhe antes do um tenebroso fim. Pude ouvir os poemas inflamados que as àguas vociferavam, vi as formas rigidas e colossais que os exércitos do Ar assumiam compondo fileiras etéreas de guerreiros elementais, a minha mente era sacudida pela canção da Terra, que invocava um sagrado e ancestral lamento que parecia enlouquecer-me lentamente...Porém, tudo aquilo que eu representava era absolutamente insignificante, por mais que gritasse ou apelasse para ser levado à presença dos sacerdotes, ninguém estava disposto a ouvir-me...”
- Estais a dizer-me que vós sois um deles? Dos sobreviventes da Ilha-Continente? O relato que haveis feito na Casa do Vento Sagrado, é afinal uma recordação pessoal?- Arístocles levantou-se repentinamente e sem se aperceber começou a deambular pelo Templo da Espera, como se o movimento o ajudasse a compreender os novos paradigmas com que se confrontava. Não sou um deles...- sorriu Djehut- o meu pai era rei da terra que hoje pisas muito antes de ela ser conhecida por Egipto, antes das dinastias de faraós filhos do Sol! Sou filho de uma história oculta e desconhecida....- Não compreendo - retorquiu o filósofo, as mãos molhadas pela sede de saber...- Fui levado para Atalantea quando era ainda uma criança. Uma conspiração dos guardas do palácio permitiu o meu fácil desaparecimento durante a noite...Acreditaram que o meu pai cederia facilmente à chantagem entregando a última Pedra Solar que ainda não tinham conseguido obter, em troca da minha vida. Porém, ele manteve-se inamovível e a sua Vontade, impenetrável, pois sabia das consequência da utilização de tais artefactos... - Sentisteis-vos abandonado, pelo vosso próprio povo? -Eu era apenas uma criança Arístocles, mas de alguma forma sentia que a minha vida colocada na balança de Maat jamais pesaria tanto como a vida de milhares de pessoas da região do crescente...Foram-me infligidas penosas torturas, cada uma das quais o meu pai sentia diariamente no seu próprio corpo e que torturavam a sua alma, talvez mais do que a mim próprio. Mas, ainda assim, a sua posição não se alterou.- Tortura!?- gritou exasperado- A uma criança!!? Mas referisteis-vos à harmonia das suas construções, à sonoridade divina da sua música, aos elevados preceitos da magia cerimonial, ás sagradas dinastias de Reis-Alquimistas! Como foi possível...?- Não só possível, mas inevitável... O movimento lento e perpétuo da roda das Eras, é um poderoso veículo capaz de transmutar versos soltos em hinos dignos de um deus, mas também converte a mais explendorosa consciência, no mais obscuro e tenebroso dejeso de poder fomentado por um incomensurável egoísmo. Os olhos e ouvidos dos reis, ou seja os seus mais fieis servidores e conselheiros que deviam projectar a imagem da nação, passam a substitui-la pelo seu próprio ego e desejos pessoais. A pirâmide social deixa de ressoar, desde o topo até à base, e a melodia governativa do Estado-Ideal, converte-se num som estanque e oco. Como uma colmeia incapaz de suster as suas abelhas, a forma piramidal desintegra-se e transforma-se num pilar instável que pode vergar a qualquer momento...E tu sabes o que sucede às abelhas quando perdem a sua rainha e a sua colmeia. A sua fúria vira-se contra as da própria espécie, tal como uma praga, vagueiam pelos campos de flores sem qualquer objectivo. Outrora inofensivas abelhas melífluas adoptam comportamentos violentos semelhantes ao das estipes mais perigosas...- Então quereis dizer que é assim que a queda tem início? Quando se instala o culto à personalidade?- Quando os sacerdotes que servem um Ideal, focam a sua atenção nos unguentos que lhes cobrem o corpo, na qualidade do incenso que queimam no seu templo mas esquecem a voz dos elementos e mutilam com a sua futilidade o pacto que mantinham com o Fogo da Verdade...Assim foi o primeiro dos últimos dias.- Presumo que tal decadência moral tenha originado novas leis e códigos de conduta- acrescentou o filósofo incrédulo- Enganas-te- retorquiu o sacerdote- apenas uma reinterpretação dos mesmos à luz das suas mentes obscurecidas...- E encontraram nos outrora iluminados preceitos, uma possível justificação plausível para o caos que se instalou?
O peso da noite desértica adensava-se sobre ambos, e o fogo que ardia nas piras gigantescas projectava insólitas sombras nas paredes do templo que dançavam inquietas ao Som das Esferas..Djehut ponderou por alguns momentos , o seu rosto assolado por uma expressão de dor: - Para o Caos, para a submissão de todos os povos considerados menos "evoluídos", para os exércitos de homens sem alma e de criaturas meio-homem meio-animal, para as vozes dicidentes petrificadas e lançadas ao fundo do mar, para os elementais aprisionados sem mútuo acordo no coração de jóias mágicas. Não são as leis que moldam os homens Arístocles, mas sim a forma como estes se reveêm nelas e os olhos segundo os quais as encaram...Não são os ensinamentos que constroem o teu Estado-Ideal, são os seus habitantes que reúnem o conhecimento que a expansão da sua consciência lhes permite num determinado momento histórico. - Sinto-me verdadeiramente impotente então! - Arístocles cerrou os punhos num contido acesso de fúria divina.

1 comment:

  1. Querida Seshat,
    Parece-me que a história está a "afunilar" para o final mas livra-te de escrever o final tão cedo! :D
    Já agora, quando publicas mais uma parte da tua história?

    Beijinhos,
    Richard

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